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Belem, PARÁ, Brazil
Graduado em Historia.

sábado, 5 de novembro de 2011

DESCONSTRUINDO O PROJETO RACISTA NO BRASIL




Esse texto servira de base de apoio aos alunos do segundo ano, portanto não tem fins lucrativo o que ficamos grato ao excelente trabalho da Professora Doutora Maria das Graças de Andrade Leal do curso de especialização em história das culturas afro-brasileiras pela faculdade de tecnologia e ciências. O texto faz um passeio na história social dos negros no Brasil, tendo como conjuntura a transição da monarquia para a república, sendo que não houve um projeto social, econômico, cultural, mas sim o projeto racista à principal força de trabalho que sustentou a economia brasileira. Mas que as transformações na participação deste agente em todos os segmentos da sociedade brasileira vem sendo conquistado com a sua própria resistência ao emblemático programa criminalizador do estado que tinha como projeto exaurir o negro do seu quadro fisionômico.




A idéia de revolução social amarrava o sentido dado à República instaurada, como ameaça que rondava a todos. Neste sentido as elites política e economicamente dominante e os segmentos médios passaram a veicular o discurso do temor. Observavam a mobilização da população trabalhadora, pobre e miserável, constituída por operários, trabalhadores qualificados ou sem especialização, indigentes, mendigos, loucos, em sua maioria remanescente africanos, negros e mestiços, no contexto de implantação de uma República dita democrática e, ao mesmo tempo, de inexistência de instrumentos legais que diferenciassem negros e brancos e que demarcassem as distâncias sociais e raciais na nova ordem.
Os limites de um projeto político claro para a implantação do novo regime, seja do ponto de vista das elites tradicionais, das camadas médias e do operariado, favoreceram a manutenção das forças das antigas lideranças em detrimento do processo de organização política das classes emergentes. O discurso ficou limitado a questões morais, relacionadas à cultura clientelista que vigorava no Império e que não se dissolveria, necessariamente, com a República.
Não obstante as tensões presentes nas relações sociais pela participação de setores das classes populares e operárias, no contexto da pós-abolição, os caminhos que se seguiram à consolidação da República reforçaram os padrões de diferenciação social a partir de critérios que incluíam as marcas de origem de classe e de raça.
Desde o Império o ideal de civilização foi perseguido pelas elites nacionais, conforme os padrões branco-europeus vigentes. O processo de modernização iniciado no segundo Império foi intensificado no novo regime. Tornou-se uma obsessão republicana a inserção do Brasil ao mundo da civilização, tal qual ocorria na Europa, especialmente a partir dos padrões parisienses e londrinos.
A exemplo de algumas capitais, como Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Belém, Porto Alegre, Fortaleza, em Salvador foi disparado o processo de urbanização e melhoramentos materiais. O modelo de sociedade elaborado pelas elites cultas visava atender o padrão europeu nos planos econômicos, políticos, sociais, culturais e raciais. Em relação à conformação racial, na perspectiva da política de branqueamento instaurada, a fim de tornar o país mais “branco” e menos “negro”, o discurso oficial era sustentado pela ciência, enquanto paradigma do projeto e da civilização, que, por sua vez, caracterizava-se como dogma a ser perseguido e praticado.
No conceito de civilização as idéias de modernização, de ordem, de progresso foram aprofundadas na perspectiva de sua aplicabilidade nas dimensões material, social e cultural. No programa civilizador instituído nas principais capitais brasileiras durante a República Velha, privilegiou-se a urgência higiênica e estética. Esta urgência estava relacionada, em sua dimensão material, ao projeto urbanístico que tratou de torná-las eficientes e bonitas, conforme o modelo francês e inglês, dotando-as de infra-estrutura, espaços de lazer, vias públicas alargadas, renovação arquitetônica segundo o ecletismo, entre outras iniciativas que elevassem as cidades à altura dos principais centros urbanos do mundo.
Antes de tudo, as ruas das cidades, melhoradas, modernizadas, higienizadas, saneadas e depuradas socialmente, deveriam compor um cenário de desfile para as elites, sendo locais onde estas exibiriam seus postos e ostentações.
No interior das reformas – urbanas, sociais, culturais – a lógica da urgência higiênica e estética sustentava as iniciativas de intervenção na paisagem física das cidades, como de interferência simbólica.
Era necessário resolver problemas de insalubridade. Para tanto tornou-se imperativa a implementação de reformas urbanas como princípio norteador do programa civilizador. Neste aspecto, os melhoramentos foram dirigidos para obras de saneamento, como calçamento de ruas, introdução de serviços básicos de transporte, asseio e limpeza, iluminação, abastecimento de água, sistema de esgoto, melhoramento dos portos, higiene das habitações, alargamento de ruas e abertura de avenidas etc., nas quais estavam presentes a introdução de tecnologias modernas – cinema, telefone, eletricidade, automóvel, imprensa e de uma estética de sofisticação manifestada pelo novo estilo arquitetônico inspirado no ecletismo. A nova estética guiou a destruição da cidade “velha” para a construção da cidade “moderna”.
Neste sentido, a modernização civilizadora do Rio de Janeiro se tornou o modelo tropical de sucesso a ser copiado pelas demais capitais. Recuperada a tranqüilidade nacional e garantida a consolidação da República, após o período de agitação política que caracterizou a implantação do novo regime, entre 1890-1897, Campos Sales (1898) assinalou um novo começo republicano pela introdução da belle époque carioca, bem como pelo ressurgimento das forças tradicionais, representadas pelas elites agrárias e seus aliados que triunfaram sobre os desafios políticos radicais pretendidos pelos segmentos urbanos em torno de uma revolução sonhada.
Apesar das reformas urbanas operadas no bojo das suas belle époque, persistiram heranças associadas à manutenção do controle exercido pela elite e sua expressão sócio-cultural.
O abraço republicano do país à civilização e ao progresso à la européenne continha a crença de se garantir um lugar de destaque no cenário ocidental, ao agregar o valor da sua grandeza territorial e riqueza natural. Nele, estava embutida simultaneamente a lógica da negação do que era efetivamente brasileiro. Ou seja, o aspecto condenatório do passado colonial considerado atrasado era associado aos aspectos raciais e culturais. A preponderância demográfica de negros e mestiços no cotidiano urbano, remetia ao passado escravista. Neste sentido, tudo aquilo que destoasse do padrão europeu de civilidade era considerado colonial, prática atrasada ou caracteristicamente africano.
O projeto social de civilização tinha como premissa a “limpeza” da cidade de tudo que remetesse ao feio e à pobreza. Era necessário então purificar a cidade da multidão de pobres e negros que circulavam livremente pelos espaços públicos, proporcionando um espetáculo desagradável, o que desabonava as condutas aplicadas para alcançar os padrões de civilidade. Neste aspecto a “insalubridade” social estava associada à pobreza em todas as suas dimensões. Pobreza estava relacionada ao modo de vida popular que por sua vez significava risco à saúde, imoralidade, subversão da ordem, promiscuidade.
Para solucionar os males deste estado social “incivilizado”, o projeto civilizador investiu no controle da vida das classes populares, reprimindo e proibindo a mendicância, os cultos místicos ou religiosos não-católicos, as manifestações lúdicas, disciplinando o trabalho nas ruas, bem como buscando o “melhoramento” da raça por meio do branqueamento progressivo.
Para que o fluxo favorecesse o estado de “civilização” era necessário destruir o passado. E o passado se presentificava insistentemente nas marcas africanas da escravidão que circulavam livremente pela cidade republicana. A cenografia da civilidade não estava completa e constrangia o olhar do transeunte “civilizado” ao se deparar constantemente com a massa popular constituída majoritariamente de negros e mestiços, alguns ainda africanos e outros descendentes.
As aspirações elaboradas pelas elites visavam, além do desenvolvimento material, a estruturação de uma nova ordem nos comportamentos, na moralização dos costumes e na recomposição racial. Para tanto, novos hábitos de civilidade surgiam enquanto os antigos eram sufocados e recolhidos nas franjas da sociedade pelas classes populares. Pelo seu conteúdo burguês, o projeto civilizador manteve o povo à margem, empurrando-o para a pobreza, para os guetos, para a periferia material e cultural.
As práticas populares, consideradas bárbaras, deviam, se possível, ser suprimidas ou afastadas para longe dos olhares sofisticados das elites. As demolições e interdições de prédios e casas do antigo centro da cidade destinadas à abertura de ruas e avenidas se refletiram na falta de moradias e provocou alta dos aluguéis, afetando diretamente a população mais pobre. A tendência foi de buscar espaços mais distantes, localizados nos arrabaldes da cidade. Foram-se construindo bairros proletários à mercê de qualquer política de construção apoiada pelo Estado. O projeto civilizador territorializava, desta forma, a riqueza e a pobreza. Neste sentido, a República da civilização e do progresso, com a sua política saneadora, mantiveram da sua tradição colonial a solidez da hierarquia sócio-econômica, agregando a ela, além do preconceito social, o preconceito de raça.
A questão era de como refazer o edifício social com a presença de negros circulando livremente pelos diversos espaços, enquanto testemunhas da escravidão, descendentes diretos ou indiretos de africanos e representantes de parcela substancial da população. Suas tradições se mesclavam ao projeto civilizador no emaranhado das ruas estreitas, sujas, coloniais, enquanto floresciam com uma vitalidade própria nas regiões mais pobres dos arrabaldes das cidades.
A alternativa foi atacar “civilizadamente” a mácula da barbárie. O povo passou a ser perseguido, visando a sua “reeducação” pela via da repressão policial. Iniciaram-se os combates contra o que fosse vinculado aos costumes e carências da população pobre e negra em contraposição aos africanos velhos sobreviventes.
O “BRANQUEAMENTO” NA ROTA CIVILIZADORA
Entre o saneamento material e o social estava colocada a questão racial como problema a ser resolvido no âmbito do projeto civilizador. A política de branqueamento no Brasil havia sido colocada na pauta ideologizante das elites, desde a segunda metade do século XIX. A partir de 1870 a importação de ideologias raciais baseada em modelos evolucionistas e social-darwinistas de países colonialistas centrais – França e Inglaterra - se intensificou. As elites tropicais aderiram às teses raciais como modelos explicativos a serem seguidos em função do atraso técnico atribuído ao grande contingente populacional de não-europeus e ao índice majoritário de mestiços. O clamor pela civilização dos costumes estava associado à extinção de hábitos primitivos relacionados aos negros africanos e descendentes. O propósito era de, em nome do progresso e da civilização, eliminar-se cultural e demograficamente os elementos africanos da população brasileira. A sua existência significava “atraso” que deveria ser superado pelo “saneamento racial”. Evolucionismo social, positivismo, naturalismo e social-darwinismo foram teorias adotadas no Brasil para fundamentar a interpretação da cultura nacional que explicasse os contrastes com as heranças metropolitanas e sua origem colonial. O ideário cientificista foi adotado como dogma religioso aplicado em programas de higienização e saneamentos urbanos. A Europa garantira a autoridade científica sobre o resto do mundo, o que lhe favorecia a elaboração da tese de sua superioridade racial como justificativa das conquistas econômicas e políticas que realizava sobre os povos “inferiores”, exportando-a e transformando-a em corolário facilmente assimilado.
As teorias raciais, embutidas e explicitadas nas práticas imperialistas de dominação européia, foram adaptadas no Brasil e aplicadas como forma de garantir a aproximação ao mundo europeu, a partir da crença da inevitabilidade do progresso e da civilização. Paradoxalmente, enquanto tais teorias difundiam uma visão pessimista sobre a inviabilidade do Brasil, por ser uma nação composta por raças mistas e por isto “degeneradas”, as elites tropicais, mestiças, buscavam superar o mal-estar em aplicá-las na especificidade de um país totalmente miscigenado.
Os auto-reconhecidos “homens de sciencia” adotaram modelos evolucionistas, em especial social-darwinista, atualizando o que combinava e descartando o que era problemático, gerando, por sua vez, um argumento racial adaptado à realidade brasileira. Assim, foram adaptados elementos que justificavam a existência de uma hierarquia natural, comprovando a inferioridade da maioria da população negra e mestiça, e descartados outros que agrediam os “infortúnios da miscigenação”, uma vez ser a sociedade brasileira multirracial, com a presença do mulato no seio das elites.
Foram teorias que serviram como justificadoras das diferenças essenciais entre os homens, respaldando a conservação e definição de uma identidade nacional já cristalizada nas hierarquias sociais agro-escravistas.
Para o darwinismo social (ou determinismo racial ou teoria das raças), a miscigenação foi entendida de forma otimista, ao encará-la em seu ideal político e submissão ou possível eliminação das consideradas raças inferiores - negros – dando lugar à política eugenista que previa a intervenção na reprodução das populações em seu crescente branqueamento.
A nação republicana brasileira passava por um processo de crise identitária no contexto da nova ordem social e política. Era necessário negar o passado em alguns dos pontos considerados críticos. Negar a tradição africana significava afirmar a inferioridade do negro, por sua vez associada à condição de escravo e de instrumento de trabalho. Passou a ser identificado como grupo étnico-racial inferior. Respectivamente, era importante afirmar valores europeus, considerados superiores porque de brancos. Nesta lógica, a elite brasileira auto-identificou-se como branca, assumindo características de superioridade étnica.
O preconceito racial emergia enquanto categoria histórico-sociológica construída pelas elites brasileiras, auto-referenciadas de “brancas”, a partir da visão luso-brasileira, cujos padrões ideais de civilização baseavam-se no eurocentrismo – no sentido do europeu “superior” - contra a inferioridade dos asiáticos, africanos e americanos. No Brasil, as categorias de “branco” e “negro” foram adotadas não apenas como biológicas, mas, sobretudo como sócio-políticas.
O 13 de maio rompera o equilíbrio político que havia conservado distante os escravos, considerados bárbaros, das elites personificadas nos senhores. O pós-abolição suscitou temores de turbulência social por parte das autoridades e elites proprietárias. Esbarrou-se, então, nas formas legalistas do liberalismo quanto ao nivelamento jurídico entre senhores e escravos. Os negros tornaram-se livres, porém não iguais. A República veio reafirmar o descompasso entre o passado glorioso respaldado na monarquia e na escravidão. Tornou-se imperativa a criação de mecanismos diferenciadores que mantivessem cada um no lugar social devido.
Medidas repressivas foram imediatamente adotadas. A preocupação com criminosos urbanos se tornou a tônica da re-arrumação social na pós-abolição em detrimento de políticas públicas que visassem solucionar as conseqüências sociais advindas da abolição. A força policial foi ampliada e as perseguições aos pobres, às manifestações culturais populares e africanas, ao negro indigente se tornaram rotina. A lógica interpretativa das diferenças raciais veio suprir a ameaça de perda da posição hegemônica das elites tradicionais, bem como frear uma iminente supremacia da raça negra. O jogo da capoeira, os batuques nos terreiros de candomblés, as organizações carnavalescas, entre outras expressões do modo de vida popular e africano foram sistematicamente perseguidas.
A saída era civilizar o país no sentido de branqueá-lo.
A questão racial se transformou em problema de saúde pública que envolvia desde as epidemias aos atos criminosos. O cruzamento racial explicava a criminalidade, loucura, degeneração cuja teoria tinha inspiração no pensamento de Lombroso da Escola Antropológica Italiana de Criminologia cujo principal discípulo brasileiro foi Nina Rodrigues. Os fatores de infração penal para Lombroso estavam diretamente relacionados ao meio ambiente, à hereditariedade e às estruturas econômicas. Neste sentido, o conceito de punição ultrapassou as bases jurídicas alcançando as explicações sociológicas. No início da República observou-se a interface da criminalidade com a questão racial.
Os diversos mecanismos de exclusão do negro, africano e brasileiro afro-descente, foram aplicados nas dimensões materiais e simbólicas. Barreiras foram erguidas à inserção no mercado de trabalho,negando-se o lugar a ser ocupado pela mão-de-obra do negro e incentivando-se a imigração de trabalhadores europeus. Os republicanos se comprometeram firmemente em promover o desenvolvimento econômico com mão de obra importada da Europa, aprofundando a política imigratória como estratégia de possibilitar a inserção de brancos europeus, tidos como civilizados, ao Brasil que marchava em direção ao progresso material e à civilização. Ou seja, as questões da mão-de-obra e do perfil racial do brasileiro estavam intimamente ligadas e a imigração européia seria uma forma de melhorar a composição racial. Justificava-se a falta de competência, de habilidade, de talento por parte do negro por ainda se situar na condição de semi-bárbaro e primitivo. Era considerado indolente e incapaz de “civilizar-se”. Era um argumento que fortalecia a tese do branqueamento, comprovada pelas cenas de violência praticadas pelas forças policiais que reforçavam a imagem do negro atrasado e anti-social e incentivavam a elite para trabalhar por um Brasil mais branco.
Simbolicamente, a exclusão foi viabilizada pelas idéias racistas, supostamente científicas. A ciência fertilizara o terreno para fazer florescer o racismo científico com o vigor político, social, cultural e econômico. A crença na superioridade do branco e na inferioridade do negro se tornou o ponto central das análises a respeito da definição do povo e da nação brasileiros. Raça e nacionalidade faziam parte de uma única preocupação no processo de construção da identidade brasileira, em torno da definição do povo como população de mestiços.
Entre 1888-1914, a teoria da superioridade ariana foi aceita como fato de determinismo histórico.
No Brasil o ariano se transformou no “branco”, endossando-se a teoria da degenerescência do mestiço, a partir da qual o negro nunca havia ou haveria de construir civilização alguma, em função do caráter “primitivo” das estruturas sociais africanas, colocando em posição de combate ao africano o prestígio da cultura e da ciência “civilizadas”. A ciência, através de médicos e psiquiatras, ofereceu uma base morfológica, respaldando a confirmação da superioridade da raça branca.
Foi estabelecida uma hierarquia intelectual a partir da craniologia.
Para Querino estas afirmações não correspondiam à realidade brasileira, e baiana em particular, pois o valor e a contribuição do negro era inegável na constituição da nossa nacionalidade. Foi a partir da colaboração do braço e do talento negro que o Brasil havia se tornado próspero, “independente, nação culta, poderosa entre os povos civilizados”. Entre tantas formas de contribuição “competia-lhe, portanto, um lugar de destaque, como fator da civilização brasileira.” Argumentando a favor do mestiço, valorizando a sua atuação na política, na literatura, nas artes.
Do convívio e colaboração das raças na feitura deste país procede esse elemento mestiço de todos os matizes, donde essa plêiade ilustre de homens de talento que, no geral, representaram o que há de mais seleto nas afirmações do saber, verdadeiras glórias da nação.
O viés racial das teorias evolucionistas teve influência do Conde Arthur de Gobineau, entre outros intelectuais, políticos e cientistas estrangeiros. Na vertente pessimista, própria dos viajantes estrangeiros que aportaram no Brasil, Gobineau definiu o Brasil como “nação degenerada de raças mistas”, e por isso inviável enquanto nação. Detestava o Brasil. Considerava-o culturalmente estagnado e reduto de muitas doenças que causavam risco à saúde. O desprezo que alimentava sobre os brasileiros estava diretamente relacionado às manchas presentes pela miscigenação. Para ele “a população nativa estava fadada a desaparecer, devido à sua ‘degenerescência’ genética”.Seu senso estético ofendia-se com o espetáculo de uma população totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia.
A originalidade do pensamento racial brasileiro articula-se à construção da teoria do “branqueamento”. Baseada na presunção da superioridade do branco, a “miscigenação” foi defendida de forma otimista uma vez que “não produzia inevitavelmente ‘degenerados’, mas uma população mestiça sadia capaz de tornar-se sempre mais branca, tanto cultural quanto fisicamente.” Assim, naturalmente os pretos tenderiam a desaparecer dentro de um século e o Brasil estaria totalmente “branqueado”. Neste sentido, as ideologias raciais foram apropriadas e dirigidas para o grupo social subordinado. Desta forma, reproduziram-se os obstáculos de ascensão e reconhecimento social aos não-brancos, mantendo-os excluídos política, econômica e socialmente, o que era justificado pela inferioridade biológica e cultural em relação aos brancos.
Os primeiros estudos sobre a questão racial no Brasil, e na Bahia em particular, foram realizados por Nina Rodrigues na década de 1890. Tornou-se pioneiro em etnologia afro-brasileira e medicina legal. Embora fosse mulato, tornou-se o principal doutrinador racista brasileiro de sua época. Defendeu idéias racistas ortodoxas, a partir das quais afirmava-se não existir dúvida científica da inferioridade do africano.
Ao citar Silvio Romero (darwinista social), Nina Rodrigues demonstrava sua preocupação em torno da nacionalidade a partir dos negros “puros ou mestiços”. Afirmava ser necessário “julgá-los separadamente, discriminando as suas capacidades relativas de civilização e progresso.”
O cerne da questão: a constituição da nossa nacionalidade, em que intimamente as fundiram com o negro americano em parte, mas, sobretudo o branco. Em torno deste fulcro – mestiçamento -, gravita o desenvolvimento da nossa capacidade cultural e no sangue negro havemos de buscar, como em fonte matriz, com algumas das nossas virtudes, muitos dos nossos defeitos.
O negro era entendido, conforme Silvio Romero havia escrito em 1879, não apenas uma máquina econômica, mas “antes de tudo, e malgrado sua ignorância, um objeto de ciência.” Silvio Romero apelava para que a ciência no Brasil se preocupasse com o estudo das línguas e religiões africanas, tendo em vista estarem os africanos morrendo, se extinguindo, como conseqüência da extinção do tráfico. Tratava-se de manancial para o estudo do pensamento “primitivo”.
Neste sentido, Nina Rodrigues foi quem atendeu àquele apelo, ao dedicar-se ao conhecimento “científico” sobre os negros brasileiros e africanos, enquanto objeto de estudo, em função da sua condição de professor de medicina legal na Faculdade de Medicina da Bahia. E a Bahia, por sua vez, era considerado campo privilegiado de estudos, por ainda possuir alguns africanos de idade muito avançada, que em poucos anos estariam desaparecidos···.
Passou a estudar o que denominava “o problema ‘o negro’”. Considerou ser mais importante para o Brasil determinar se o “mestiçamento” compensaria a inferioridade presente pela incorporação de “doses colossais de sangue negro” para a população de cor. O importante para o Brasil era identificar o quanto da sua inferioridade advinha da dificuldade de civilizar-se por parte da população negra e se essa inferioridade seria compensada pelo “mestiçamento” para a grande massa da sua população de cor, enquanto processo natural por que os negros estavam a se integrar no povo brasileiro.
A questão principal colocada por Nina Rodrigues e seus seguidores foi a da definição do brasileiro enquanto povo e do país como nação. Para isto procuraram respostas científicas impregnadas de interesses políticos. “Antes de ser pensada em termos de cultura, ou em termos econômicos, a nação foi pensada em termos de raça.”
Levantou dúvidas sobre as especulações “de uma incapacidade absoluta de cultura dos negros”, observando ser a “morosidade” da “civilização dos negros” o ponto fraco para poder alcançar o mesmo grau de aperfeiçoamento dos brancos.
Nina Rodrigues, inspirado pela teoria lombrosiana e utilizando-se do método positivista nas ciências humanas, procurou demonstrar as evidências físicas da degeneração e do controle científico dos grupos minoritários – loucos, criminosos, negros. Considerava que os delinqüentes natos traziam a tendência criminosa corporificada por caracteres anatômicos acrescidos de impulsos epileptiformes e poderia ser reconhecível pala configuração física e craniana. Eram argumentos racistas que serviam para afirmar uma tendência nata da “criminalidade dos pretos”.
As idéias cientificistas que reforçavam o projeto nacional de branqueamento serviram de premissa para consolidar o posicionamento afirmativo de Manuel Querino em relação ao valor do negro. Ao abordar sobre a importância do africano e seus descendentes para a construção da nação brasileira, contestou os aportes teóricos advindos das teorias raciais que subsidiavam a política eugenista discutida e implementada no país, e em particular na Bahia com a Escola Nina Rodrigues.
Comprovou, através de argumentos histórico-social e cultural, terem sido os africanos e seus descendentes aqueles que de fato haviam contribuído para o engrandecimento da nação em detrimento dos portugueses - neste sentido dos brancos. Assim, deu visibilidade a uma outra leitura da existência, presença e das experiências de um segmento da população ainda invisível enquanto produtora de cultura e colaboradora para a formação da identidade nacional brasileira. Não como objeto de ciência, os africanos e seus descendentes foram interpretados como sujeitos históricos que se confundiam com a história da formação da nação brasileira.
No contexto da Primeira Guerra Mundial, aflorou-se a necessidade de uma avaliação realista do Brasil. Foi estimulado o pensamento nacionalista, promovendo-se a redescoberta da nação brasileira pela rejeição do pensamento racista e de idéias importadas da Europa. Iniciou-se a reavaliação do conceito de raça enquanto afirmava-se ter o Brasil uma identidade e um destino a serem controlados por brasileiros. Miguel Calmon passou a recorrer ao passado e às realizações históricas do mestiço; Gilberto Amado levantou a defesa do nativo brasileiro.
O ano de 1916 foi significativo para o reexame da identidade nacional. Com a fundação da Revista do Brasil, a preocupação com a nacionalidade, sem, contudo deixar de lado o ideal de branqueamento pretendeu-se reunir um núcleo de propaganda nacionalista. Em 1918 a Revista foi comprada por Monteiro Lobato. Foi um espaço de debates, críticas, controvérsias sobre os problemas brasileiros. Ainda em 1916 foi publicado por Afrânio Peixoto o compêndio Minha Terra e Minha Gente. A Guerra estimulara um esforço de mobilização nacional cuja última experiência ocorrera durante a Guerra do Paraguai (1865-1870). Na década de 1920 Oliveira Viana realizou uma formulação mais sistemática cuja versão, demasiado otimista do ideal de branqueamento, concluía que “o Brasil estava em vias de atingir a pureza étnica pela miscigenação”.
Foi o ambiente propício para fazer aflorar um novo sentimento que permeou a construção de uma nova estética – uma estética da reação - ou um estado de espírito revoltado que provocara uma verdadeira revolução cultural, conhecida por “movimento modernista” cujo clímax foi atingido na Semana de Arte Moderna em 1922. Apesar de ter sido uma importação a mais no mosaico cultural brasileiro, tinha o ideário de reverificação e mesmo de remodelação da Inteligência nacional.
O movimento modernista se caracterizou em criador de um estado de espírito nacional. Os rebeldes desejavam “passar a limpo” o País, inserí-lo na contemporaneidade universal sem sacrifí- cios de seus legítimos valores, através de uma tomada de consciência da realidade nacional e sua possível projeção no campo artístico, cultural e até mesmo político.
A Semana de 22 se constituiu em marco comemorativo que indicou, de forma ostensiva e dramática, o encerramento de um período histórico e o início de outro. Seus principais objetivos foram atingidos, como “o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional.”
O esforço do Movimento Modernista estava em destruir aquilo a que se chamava de “passadismo” traduzido pelo academismo que sufocava aspirações joviais e iniciativas possantes. A rejeição à Academia significava travar a luta do novo contra o “velho”. E o “novo” era o que se fazia em Paris. O que os modernistas desejavam era apagar o ranço de uma civilização cada vez mais superada no espaço e no tempo. Para tanto quiseram criar uma linguagem de acordo com o seu tempo.
Contudo foi o sentimento do nacional que os levou a analisar e estudar as nossas fontes mais tradicionais de inspiração. Inspirados pelos progressos internos da técnica e da educação, os modernistas construíram o discurso do mundo moderno baseado no automóvel, nos fios elétricos, nas usinas, nos aeroplanos, na arte – elementos que compunham a estética moderna. A expressão mais elevada do movimento foi a integração da brasilidade através de uma linguagem atual do ponto de vista pictórico cujas principais referências foram Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti. A orientação nacionalista, de descoberta e revelação do Brasil, possibilitou a busca de suas raízes.
No ano seguinte Manuel Querino deixava de fazer parte deste mundo. Mas sua obra vivia. Seu pensamento, associado de uma maneira ou de outra ao movimento modernista, naquilo que dizia respeito à busca das raízes nacionais, tornava-se atual. Permanecia na história do Brasil como um contributo importante que mais tarde fora resgatado pela sua originalidade, especialmente nos anos de 1930 quando ocorreu o movimento de “reabilitação africana” nos estudos etnológicos e sociológicos do africano e seus descendentes brasileiros. Houve o resgate intelectual de Nina Rodrigues pelos discípulos Afrânio Peixoto (dileto) e Arthur Ramos (‘mais humilde de seus discípulos’). Constatou-se, então, que poucos haviam se dedicado antes à etnografia e sociologia do africano e seus descendentes. Silvio Romero (1888), Nina Rodrigues (morto em 1906) e formação cultural brasileira. Foram levantadas discussões sobre o conceito de democracia racial, realizados dois Congressos Afro-brasileiros reunidos no Recife em 1934 e na Bahia em 1937. Enquanto reuniões científicas discutiram-se profundamente teses sobre os diversos aspectos da cultura afro-brasileira, bem como sobre o processo de resistência negra. Os movimentos negros surgiram no sul com o objetivo de agrupar os negros brasileiros para obtenção de representação política, defesa dos direitos e elevação educacional, fundando-se em São Paulo a Frente Negra e em 1932 na Bahia. Em 1937 foi fundada na Bahia a “União de Seitas Afro- Brasileiras da Bahia”, que teve como seu primeiro Presidente o Professor Martiniano Eliseu do Bonfim, babalaô de fama na Bahia.
MOVIMENTO NEGRO E AS LUTAS PELA INCLUSÃO
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
O movimento negro brasileiro, formado de pessoas negras que experimentam o racismo no dia a dia e que recuperando lembranças de um passado de dominação e de sofrimento compartilhados, vem, ao longo do tempo abrindo fendas, esgarçando as tramas do tecido social bem urdido e mostrando à sociedade o que ela sempre quis esquecer.
As lutas de resistência à escravidão que vigoraram durante o Brasil escravista, seguiram-se outras relacionadas à valorização da população negra na pós-abolição. Excluídos do mercado de trabalho e de outras possibilidades de exercício da cidadania, os negros conviveram com as idéias do racismo supostamente científico, em uma situação de extrema opressão. O movimento negro percorreu fases de luta contra o racismo, contextualizadas a momentos históricos determinados e associadas aos quatro estágios pelos quais os afrodescendentes experimentaram no processo de constituição da sua identidade – estágios de submissão, impacto, militância e articulação. A primeira, associada ao estágio de submissão, datada nas décadas de 1930 e 1940, caracterizou-se pela tentativa de construção de espaços, ainda tímidos, onde pudesse ser discutido o “problema” do negro no Brasil.
Nesse primeiro momento manteve como referência valores “branco europeu”, a exemplo da Frente Negra Brasileira, fundada em São Paulo em 1931 e extinta em 1937. Com os objetivos de defender direitos civis, elevação moral, intelectual, artística e profissional dos negros, por meios pacíficos, procurou-se retirar a marca da negatividade associada à população negra pela assimilação dos padrões branco-europeus. Foi o contexto da formulação da teoria da democracia racial no Brasil elaborada por Gilberto Freyre, popularizada nos romances de Jorge Amado e absorvida por Darcy Ribeiro na academia. Foi quando ocorreram dois Congressos Afro-Brasileiros – o primeiro em Recife-Pernambuco (1934) e o segundo em Salvador-Bahia (1937). O terceiro Congresso ocorreu em Minas Gerais próximo ao início da segunda grande guerra.
Em 1937, Getúlio Vargas ao instaurar a ditadura com o Estado Novo, extinguiu os partidos políticos e todas as formas organizativas, como a Frente Negra. Naquele período foi criado um vácuo no movimento de valorização das matrizes afro-descendentes e de luta contra as injustiças e situações de humilhação vividas em função das características etno-raciais. Contudo ainda neste período surgiu a organização José do Patrocínio (1941), propondo o debate sobre o negro e o mercado de trabalho.
A segunda fase, relacionada ao intervalo democrático de 1945-64, associada ao estágio de impacto, caracterizou-se pela negação explícita da chamada “democracia racial brasileira” e da concepção de um projeto de participação ativa da população afro-descendente na condição de sujeitos das denúncias sobre sua condição de discriminado. O objetivo de criar impacto, no sentido de denunciar a discriminação, foi referendado por trabalhos de pesquisadores estrangeiros no Brasil, como Roger Bastide e a Professora Ruth Landes, bem como do sociólogo Florestan Fernandes, fundador da sociologia crítica no Brasil.
Foi um período marcado pela emergência do pensamento crítico dos negros, de denúncia do preconceito, da discriminação, do mito da “democracia racial” e de valorização das raízes africanas. Dentre os trabalhos acadêmicos que materializaram a militância com a denúncia do racismo, estão aqueles de Solano Trindade, conhecido como “Vento Forte Africano”, e do Professor Abdias do Nascimento. Com a criação, em 1944, do Teatro Experimental do Negro (TEN), foram desenvolvidas estratégias de resgate dos valores da pessoa humana e culturais afro-brasileiros e de valorização social do negro por meio da educação, arte e cultura possibilitando uma tomada de consciência de sua condição concreta. “Abdias, com seu TEN, colocou o negro no palco e fez o branco olhá-lo”. O TEN, além da ação artística de valorização do negro, alfabetizava seus participantes, entre operários, empregados domésticos, favelados sem profissão definida, modestos funcionários públicos, e provocava a tomada de atitude do afro-brasileiro no contexto nacional, visando a transformação qualitativa da interação social entre brancos e negros.
O combate ao racismo passou a ser tratado como questão nacional e o movimento negro, desde então, experimentou um processo crescente de amadurecimento. Em 1945 surgiu a Associação do Negro Brasileiro, com a preocupação de elaborar uma legislação penal de proteção à população negra contra práticas de discriminação e racismo. Diversos eventos importantes, que contaram com a participação do TEN, reuniram milhares de negros como a Convenção Nacional do Negro
Brasileiro em São Paulo (1945) e no Rio de Janeiro (1946), o I Congresso do Negro Brasileiro no Rio de Janeiro (1950) e a Semana do Negro (1955), provocando debates críticos e propositivos sobre os destinos do afro-brasileiro e consolidando o seu protagonismo na discussão dos seus próprios temas de interesse. Esse processo culminou na terceira fase, considerada por Ferreira, de militância.
Nos anos de 1970 e 80, no contexto do processo de abertura política e declínio do regime militar no Brasil (1964-1985), deu-se início às articulações para a organização nacional de um movimento negro representativo, associadas à redemocratização do país e de reorganização dos movimentos políticos e sociais. Foi um período fundamental para a aplicação de formas de superação efetiva das desigualdades de condições dos negros em relação aos brancos, pelo mergulho na negritude, com a recuperação dos valores da cultura e da história do negro. A afirmação cultural intensa foi explicitada pela valorização de novos códigos e padrões de comportamento, bem como pela supressão de denominações auto-referenciadas de “preto”, “de cor” ou “pardo” e adoção do “negro” como referência carregada de conotação positiva, com a abertura de novos horizontes para as últimas décadas do século XX.
Este retorno às origens por homens e mulheres negras passa por caminhos, cada vez mais, carregado de significados simbólicos, míticos, marcados pela tradição oral dos ancestrais. São territórios, para alguns, totalmente novos. Para outros, no entanto, é um retomar caminhadas já percorridas, revelando-se desatentos a valores que ali estavam registrados na história do povo negro. Esta identidade negra aparece nos grupos de Afoxés, que estavam proibidos, até o final dos anos 70, de saírem às ruas porque as suas cantorias foram rotuladas como subversivas à ordem estabelecida.
No início dos anos 70, o Grupo Palmares, de Porto Alegre, inaugurou a formulação mística revolucionária sobre a figura do líder Zumbi, indicando 20 de novembro, aniversário de morte de Zumbi, como Dia Nacional da Consciência Negra em substituição a 13 de maio, considerado dia da falsa abolição. O 20 de novembro tornou-se a data de maior significado e efetivamente celebrado como dia de denúncia, protesto e resistência em torno da memória de Palmares e do herói que lutou pela liberdade e transformado em símbolo de liberdade.
Diversos grupos se organizaram no período. Em 1978 foi criado o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), depois Movimento Negro Unificado (MNU).
Com a intenção de eliminar o mito da democracia racial, ao demonstrar a sua falsidade ideológica e as desigualdades sócio-econômicas e políticas dos negros brasileiros, buscava construir um projeto de superação dessa marca histórica e criar políticas de efetivação de seus direitos. Compreendendo que o movimento negro ia além do combate ao racismo, o MNU ampliou suas ações apoiando as lutas pelo fim da ditadura e retorno ao estado de direito, denunciando “as torturas de presos políticos, como a de presos comuns, em sua maioria negra, assumindo também o engajamento em prol de bandeiras sindicais, agrárias e educacionais e em questões internacionais. ” Assistiu-se a uma movimentação importante que garantiu os passos subseqüentes através da criação de diversas organizações voltadas para os estudos do negro no Brasil - o Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), fundado por Abdias do Nascimento na capital paulista, em 1980, quando do seu retorno do exílio; no Rio de Janeiro o Instituto de Pesquisa de Cultura Negra (IPCN) e a Sociedade de Estudo de Cultura Negra no Brasil (SECNEB), a Sociedade de Intercâmbio Brasil África (SINBA), o Grupo de Estudos André Rebouças; na Bahia o Núcleo Cultural Afro- Brasileiro, o grupo de Teatro Palmares Iñaron e assim por diante.
IMPACTOS DO MOVIMENTO NEGRO NA ATUALIDADE
Diversas experiências nacionais e internacionais impactaram fortemente na organização política do Movimento Negro no Brasil, tais como as ocorridas contra o colonialismo na África e em prol dos direitos civis nos Estados Unidos.
Nos Estados Unidos, a concretização dos movimentos dos direitos civis, desde o movimento do Dr. King; também a emergência da nação do Islã como um grande segmento de ação política nos Estados Unidos daquela época; os “Black panthers” com um projeto político muito bem definido do ponto de vista da participação política do negro no redesenho da democracia nacional americana. ... as lutas de independência na África, como em Angola e Moçambique.
A União de Negros pela Igualdade (Unegro), fundada em 1988, em Salvador-Bahia, articulou a luta contra o racismo à luta de classes e contra as desigualdades de gênero. Com um projeto mais amplo de atuação política, face aos altos índices de mortalidade e desemprego da população afrodescendente, se constatava que os negros acumulavam o peso de duas segregações, o da cor e o da renda, e eram vítimas de um verdadeiro genocídio. Atualmente está presente nos estados da Bahia, de São, Rio de janeiro, Santa Catarina, Minas Gerais e do Rio Grande do Sul.
Na perspectiva de recuperação de valores culturais de matrizes africanas, o movimento negro nessa terceira fase resgatou e criou grupos de capoeira, afoxés, escolas de samba, carnaval, hip hop, funk etc, além de ter avançado na luta contra a opressão simultânea de raça e de gênero. Delineou-se um movimento feminista anti-racista, trazendo à cena política questões específicas da mulher negra por sofrer dupla marginalização pelo sexismo e racismo. Um marco da organização e interlocução com a sociedade, de modo geral, foi o I Encontro Nacional de Mulheres Negras em dezembro de 1988 no Rio de Janeiro-Velença. A partir de então, mulheres afro-brasileiras, crescentemente mobilizadas, trouxeram à cena propostas de políticas públicas direcionadas às questões de gênero, ao participarem de Conselhos e demais espaços políticos de decisão – como vereadoras, parlamentares, secretárias de estado etc.
Nos processos de elaboração intelectual e de experiências concretas de combate ao racismo e de todas as formas de discriminação e preconceito, associados à formulação de políticas públicas compensatórias para a população afro-descendente, a quarta fase se delineou no contexto de um país democrático com uma “Constituição Cidadã” promulgada em 1988, considerada a mais democrática que o país já tivera, e com as primeiras eleições diretas após um “jejum” de 29 anos, desde a vitória de Jânio Quadros em 1960. Os brasileiros voltaram a escolher diretamente o presidente da república, comparecendo às urnas mais de 66 milhões de eleitores no dia 17 de dezembro de 1989.
Para o Movimento Negro, é uma fase de articulação caracterizada pela dissolução do conflito, pela construção do conceito de identidade e pelo combate político para o desenvolvimento de projetos de transformações estruturais na sociedade como um todo e voltados para a inclusão da maioria dos afro-descendentes. O marco desde processo foi o Encontro Nacional de Entidades Negras (ENEN), ocorrido em São Paulo em 1991, quando agrupou “cerca de 700 entidades, mais de 1200 militantes, diverso segmentos religiosos, políticos, sociais e sindicais” e criou um campo político do Movimento Negro.
A partir de então, segundo Ferreira, três grandes segmentos políticos de luta contra o racismo opressor no Brasil foram organizados e se complementam nos diferentes espaços em que atuam:
1º. Com o alargamento do conceito de identidade, foram reunidas entidades eminentemente políticas do Movimento Negro, como MNU e Unegro, e outras de conteúdo cultural como casas de candomblé, grupos de capoeira, escolas de samba cujos integrantes se definem afro-descendentes e comungam da luta contra o racismo e a discriminação racial. Nesta categoria de identidade de maior abrangência, conclui-se que as pessoas incluídas nos projetos de transformação, necessariamente não são somente negras.
2º. As organizações não-governamentais e a emergência de lideranças comunitárias engajadas nos sindicatos, partidos, igrejas, nas comunidades-terreiros, organizações culturais destacamse no movimento afro-brasileiro na década de 90. As ONGs são espaços de trabalho que proliferaram para atender demandas ignoradas pelo Estado, a exemplo de áreas da saúde da mulher negra e da educação e organização política da juventude. Trata-se de um fenômeno de propagação dos movimentos negros direcionados a projetos políticos e sociais para a superação do preconceito racial e a melhoria do bem-estar social, enquanto estratégia de visibilidade das questões relativas à população afro-descendente na luta permanente de construção da cidadania no Brasil.
Foram fundadas diversas organizações como o Centro de Articulação das Populações Marginalizadas, o Instituto de Pesquisa e Cultura Negra, Criola, o Centro de Estudos, Cultura e Teologia Negra da Baixada Fluminense, no Rio, o Grupo Cultural AfroReggae (GCAR) no Rio de Janeiro (janeiro de 1993); em São Paulo, o Geledés-Instituto da Mulher Negra/SOS Racismo; em Minas, a Casa Dandara foi criada para trabalhar a auto-estima, através de imagens belas e positivas de afrodesendentes; na Bahia o Grupo Cultural Olodum (1989), Bloco Afro Ara Ketu (1989), o Projeto Axé (1990), a Fundação Steve Biko (1992), entre outras organizações espalhadas de norte a sul do país.
3º. As instituições ligadas a governos municipais, estadual e federal, que concretizam a ampliação da articulação no nível de representação político-governamental na legitimação de reivindicações e direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais da população afro-descendente, foram sucessivamente criadas – conselhos, assessorias, divisões, programas, departamentos etc.
Algumas delas podem ser citadas: o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População
Negra (GTI), o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra, em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador-Bahia e outros estados, entre outras instâncias governamentais criadas para elaborar projetos políticos de promoção de melhores condições de desenvolvimento e participação dos afro-descendentes, com medidas governamentais de políticas públicas antidiscriminatórias executivas, legislativas e judiciais.
Nesta quarta fase, atualmente se estruturando, é aquela da construção dos direitos das diferenças, o que significa a conquista do “direito de reivindicar a igualdade política, econômica e social, mas o direito de ser diferente, de ser preservada a sua diferença.”
O impacto do Movimento Negro na atualidade vem se consolidando a partir de políticas de ação afirmativa para: (1) declarar ilegal o ato discriminatório; (2) estabelecer punições aos transgressores; gerar múltiplos mecanismos de fiscalização e prevenção e (4) constituir agências de promoção social de segmentos discriminados.
No âmbito da legislação em vigor, medidas foram adotadas em prol da defesa de terras dos remanescentes dos quilombos históricos. No cenário artístico nacional, seja na literatura, nas belas artes, no teatro, na música, na dança, são criados diversos espaços de divulgação da produção a- fro-brasileira, como no circuito editorial alternativo (Cadernos Negros, Quilombo hoje), em feiras de livros, exposições, centros culturais, nos palcos dos grandes teatros, na mídia televisiva e eletrônica, entre outros, ultrapassando as fronteiras brasileiras.
A atuação de parlamentares afro-brasileiros que emergiram de lideranças do Movimento Negro, tornando a expressão política negra fortalecida e expandida, vem avançando na incorporação à legislação de políticas afirmativas, de ação compensatória, a fim de reparar-se a discriminação histórica experimentada pelos africanos e descendentes no Brasil transformados em vítimas de desigualdade, exclusão, restrições e cerceamentos.
A participação afro-brasileira nos corredores do poder – partidos políticos, cargos eletivos e agências governamentais – vem crescendo bastante. Em 1982, quando realizaram-se as primeiras eleições legislativas diretas, o autor do presente ensaios [Abdias do Nascimento] foi o único afro-brasileiro enviado ao Congresso com o mandato de representar essa população. Hoje, embora não chegue perto de uma representação proporcional, o peso da voz afro-brasileira vem aumentando com várias nomeações administrativas, a eleição de dois governadores e uma vice-governadora, um número sempre maior de deputados estaduais e vereadores; três senadores e um número suficiente de deputados para reunir-se em 1997 um incipiente bloco parlamentar negro.
Um exemplo de ações de impacto na área da educação é o da expansão de Pré-Vestibulares para negros e aqueles em situação de desigualdade social cujo objetivo é ampliar a oportunidade de acesso ao ensino superior. Na trilha da política de reparação e inclusão social da população negra, pela via educacional, a Lei 73/99, chamada Lei das Cotas, estabelece reserva de vagas nas universidades públicas aos estudantes do ensino médio da rede pública e aos declarados afro e índios descendentes.
Entre discussões calorosas e polêmicas que suscitam manifestações prós e contras, ações de cumprimento à Lei foram implementadas em alguns estados brasileiros.
Desde 2001, quando da III Conferência Mundial das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata ocorrida em Durban, na África do Sul, as políticas de ações afirmativas em favor da população afro-descendente vêm rompendo com a postura do a - racismo e o anti-racismo tradicionais. Entre as medidas encaminhadas, desde então, estão o reconhecimento oficial da legitimidade de reparações para com a escravidão e cotas para negros nas universidades públicas. Os projetos de cotas para afro descendentes nas universidades passaram, no mesmo ano, a serem debatidos nacionalmente, estimulando dúvidas e polêmicas entre estudantes, especialistas em educação, representações político partidárias, militantes e na população em geral provocadas em grande medida pela mídia.
Por leis estaduais, foram, a partir de então, sucessivamente aprovadas a instituição de cotas para universidades estaduais, como nas Universidades do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Estadual do Norte Fluminense que, pela Lei no. 3708 de 9 de novembro de 2001 instituiu cotas de até 40% para as populações negra e parda. O segundo estado a adotar o sistema de cotas foi a Bahia na Universidade do Estado da Bahia-UNEB em 2002, reservando 40% das vagas do vestibular para afro descendentes. Em 2003, em nível federal, a Universidade de Brasília (UNB) foi pioneira em adotar o programa de ações afirmativas por iniciativa da própria universidade ao garantir acesso e permanência de negros e indígenas nos seus cursos.
No vestibular de 2005 foi adotado o sistema de cotas na Universidade Federal da Bahia, com a reserva de 45% das vagas, reunindo-se a outras 30 universidades que já haviam implantado as reservas em todo o Brasil, ao anteciparem-se à aprovação da legislação das cotas. A Câmara dos Deputados, em 2006, aprovou o projeto que institui o sistema de cotas nas universidades federais para estudantes que concluíram o Ensino Médio na rede pública, negros e índios, garantindo a reserva de 50% das vagas das universidades e das escolas técnicas federais para esses alunos. O objetivo do Governo é promover a inclusão desses grupos historicamente excluídos das instituições, valorizar a escola pública onde está a maioria dos alunos de classe média e baixa, garantir um quadro de alunos com o mais variado histórico e perfil social, étnico e cultural reduzir as desigualdades sociais, além de reafirmar sua política de ações afirmativas para inclusão social.
Outras medidas governamentais vêm sendo adotadas no sentido de democratizar amplamente o acesso ao ensino superior da população excluída dessa instituição até então acessível na maioria para brancos e aqueles oriundos de instituições de ensino particular. O projeto “Universidade para Todos” permitirá o ingresso de 300 mil jovens de baixa renda e professores da rede pública do ensino em instituições privadas do ensino superior, realizado pelo ENEM (Exame Nacional de Ensino Médio).
Nos últimos 10 anos, o número de instituições privadas no Brasil cresceu extraordinariamente e hoje detém 70% das vagas. Entretanto, 37,5% destas vagas estão ociosas. O programa quer utilizar essa ociosidade, transformando-as em vaga públicas. As instituições filantrópicas deverão oferecer os 20% de gratuidade – já previstos em lei – em bolsas integrais e gratuitas de ensino. As faculdades privadas poderão aderir ao programa oferecendo 10% de suas vagas em bolsas de estudo. Em contrapartida, elas também terão as isenções de impostos já previstas para as filantrópicas menos o imposto patronal para o INSS.
No âmbito da institucionalização de medidas governamentais, está a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, lançada pelo Presidente da República em 2003, sob a coordenação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), também criada em 2003, como órgão de assessoramento direto e imediato ao Presidente da República. Com o objetivo de articular, formular e coordenar políticas dentro do Governo Federal para a promoção da igualdade racial, a SEPPIR vem contribuindo com a implementação de programas voltados para a redução das desigualdades raciais no Brasil, visando a melhoria de vida da totalidade da Nação.
Estes são exemplos de conquistas históricas dos movimentos sociais e do movimento negro em particular no Brasil, que denunciaram, resistiram, debateram, problematizaram em torno de questões de interesse social, econômico, político e cultural da população afrodescendente. Para Wilson e Mattos, professor-doutor da Universidade do Estado da Bahia- UNEB, é incontestável que tais vitórias são tributárias das lutas históricas do movimento negro.
Ação afirmativa, reivindicação de direitos, luta contra a discriminação racial, todas essas terminologias que configuram as lutas pelo direito, pela inclusão, o movimento negro já vem fazendo há décadas na História do Brasil. Então, as políticas de ação afirmativa, embora hoje estejam sendo bastante debatidas, atualmente de forma mais conceitual, na verdade fazem parte das lutas das populações negras.
Temos indicação que nós estamos vencendo essa batalha do acesso ao ensino superior, mas o grande operador da desigualdade, no ensino superior ou em qualquer instância é a presença do racismo e a cota não vai acabar com o racismo. O que vai acabar com o racismo são as lutas históricas, as reivindicações históricas que nós temos. A cota é só um reforço a essa luta, mas não esgota a luta toda.
REFERENCIA
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
_____O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
http://www. Afroasia.ufba.br
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http://www.senhoradosol.com.br/textart5.htm
http://www.serpro.gov.br - Brasília,16/09/2007

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